Esperei um ano pra escrever esse post. Daqui a exatas 3 horas e 14 minutos (escrevo as 14h), nascia a Lis, depois de um loooongo TP. Longo mesmo: foram quase 24 horas de trabalho de parto.
A história começa como tantas e tantas outras: o pré-natal, a troca de médicos, a procura pelo profissional certo, que nos tranquiliza no meio do turbilhão de sensações de quem espera pra parir um ser humano. O amadurecimento tímido de uma mulher, comparado ao crescimento estrondoso que acontece depois do parto, e as mudanças de sentimento, opinião, sensação...
Tudo isso me fez chegar, aos 8 meses de gravidez, na Casa de Parto do Sofia Feldman, numa manhã de dia de semana qualquer... E foi lá que, pela primeira vez, botei os olhos numa menina. Menina mesmo! Cara de menina, olheiras de cansaço, jaleco azul, tênis branco e um sorrisão no rosto. Ela me mostrava o hospital, a Casa de Parto, acordada desde as 7 da manhã, um pique enorme de quem ama o que faz. Eu estava enebriada com aquele cheiro de novo, de sangue, cheiro de medo.
Difícil acreditar que um hospital do SUS fosse me proporcionar acupuntura, massagem nos pés, ventosaterapia, auriculoterapia... |
Sim, naquela época, parto era sinônimo óbvio de medo. A gente é construída pra isso. Medo do parto, de morrer no parto, de sofrer no parto, de dar errado o parto. E foi com aquela menina loira que eu comecei a ressignificar meu medo e minha relação com meu parto, comigo e com a vida que ia nascer alí.
Pra encurtar a história: o restinho do meu pré natal foi por lá. E conheci todas as enfermeiras e tomei um loooongo respiro pra decidir: vou fazer o parto domiciliar. Em casa, na minha cozinha. Eu, meu marido, minha filha e elas. Quanto custa tudo isso? No Sofia, não custava nada.
E desse não custava nada, era em casa e com enfermeiras obstetras e não com um médico, veio a enxurrada de esporros e pessoas me chamando de louca. E as milhares de histórias de bebês que morriam no Sofia Feldman porque lá as mulheres são obrigadas a terem parto normal e é uma loucura e meu Deus, você não é uma índia.
Um exagero de histórias de terror, um monte de gente sem saber direito porque perpetuar tanta notícia ruim e sem fonte alguma, mas fiéis destruidoras da confiança de uma mãe num sistema humanizado. E essa onda de mulheres terroristas me seguiu por dias, semanas.
A sorte é que a mãe da Lis é decidida, é de escorpião, é teimosa e meio exotérica. Não mudei de ideia hora nenhuma, nem depois de receber por inbox um monte de matérias sobre bebês morrendo em partos normais. E o terror de receber notícias de bebês morrendo há poucos dias do seu próprio parto se transformou no ato de coragem que me permite esse relato.
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Um monte de meninas <3 |
Na noite de domingo começavam as dores. E não vou aqui me concentrar nelas. Porque sim: a gente esquece tudo. Sei que eram dores fortes e tudo estava só começando.
Passei a madrugada de domingo com essas dores. Já havia acionado minha doula. E também não quero aqui entrar nesse ponto. Algumas coisas a gente não esquece mas essa, prefiro esquecer. Resumindo essa parte, a doula que contratei não veio e enviou sua substituta.
Mas isso, mais uma vez, se transformou em amor. Porque no final da tarde de segunda-feira a Júnia chegava aqui em casa. Mais uma menina. Olhos de menina, sorriso de menina, voz doce e calma de uma menina anjo. E depois dela, chegou a menina loira. E sua parceira de todo o parto, a menina do cabelo preto.
Eu estava cercada de meninas para ter minha menina. Eu estava com medo. Pra caramba. E a gente passou a noite toda aqui em casa, tentando trazer a Lis.
Acontece que ela não veio. E pra encurtar muito mesmo a história, as seis da manhã de terça, meu olho fundo e desesperado olhou pros olhos delas (das meninas) e implorou: quero ir pro hospital. Não aguento mais.
Me lembro da voz doce de uma delas dizendo: tem certeza que quer desistir do parto domiciliar agora? Você já foi tão longe... Mas uma mãe, quando vira mãe, tem uma voz interna tão forte e alta e clara que eu só respondi: não estou desistindo, estou começando agora meu parto.
Eu sentia que ela vinha e voltava. Ela chegava e voltava. E era uma sensação muito doida. Toda a força do mundo que eu fiz naquela madrugada, certamente me faria levantar facilmente um carro com uma mão só. Mas não bastou pra trazer a Lis pra fora.
E então, elas recolheram o equipamento, elas fizeram minha mala de hospital (que eu não fiz porque achei que ia parir em casa), elas me abraçaram e me levaram pro carro. Essas 3 meninas doces me deram um suporte que não tive nunca antes na vida. E escrevo isso agora chorando. Porque isso é muito, muito grande.
Eram 3 profissionais, eu nunca as tinha visto mais de um par de vezes na vida e alí elas eram minhas irmãs, mães, filhas. Elas eram parte de mim, me dando a mão, me ouvindo xingar, acalmando meu medo constante.
E a do cabelo preto, nunca esqueço: ela me olhava bem fundo na alma e dizia "Você está indo muito bem. A Lis está orgulhosa. Vc está sendo muito forte e corajosa, Marcela". E nunca ninguém havia me dito essas palavras, em 33 anos. Pela primeira vez na vida, eu acreditava nelas.
Chegando no Sofia Feldman, após experimentar a dor que não desejo a ninguém (que é andar de carro com um bebê no canal vaginal, quase coroando), fui adentrando a um outro mundo que também não conhecia. Ser mulher e ser respeitada. Um monte de gente veio me receber e em nenhum momento deixaram de me olhar no olho e perguntar PRA MIM o que eu queria. Está bem, Marcela? Quer sentar, Marcela? Quer tomar um banho? Você aguenta ir até alí? E durante toda a madrugada na minha casa até chegar por lá, minhas meninas me apoiavam, ouviam meu coração e o da Lis. E a menina loira sorria: está tudo bem, querida. Fica calma. A Lis está vindo! E calma eu ficava. Como nunca fiquei com ninguém.
Resumindo mais (porque essa história eu poderia te contar durante 3 dias a fio, sem parar), veio meu pedido para tomar uma analgesia. Já tinha passado mais de 15 horas de parto. Estávamos todos exaustos, eu estava sem comer. E todas elas também. Porque a louca não teve tempo de fazer um café descente. Lembro apenas de ter queijo, chá e café na cozinha, no desespero e na inexperiência de pais de primeira viagem. E elas seguiram firmes, sem sair de perto de mim nenhum minuto, nem pra comer um pão de queijo na cantina do Sofia quando chegamos.
E veio a injeção e eu vi Deus. Literalmente. Minha força voltou, eu conseguia falar, conversar, pensar até. Parei inclusive de xingar e voltei com minhas piadas terríveis. Era um momento bom. E durou 4 horas. Mas ela não veio. Mais uma vez, eu fazia toda a força do mundo e quando parava, ela voltava pra dentro de mim. Não dá pra explicar direito isso. Mas era isso o que eu sentia.
Então veio um médico. E eu tive tanto medo que chorei. E pedi por favor que ele não enfiasse nada em mim. Ele explicava que precisava terminar de tirar um pedaço de bolsa que havia quase estourado ou algo assim, mas eu disse: NÃO. E ele me respeitou. Porque as meninas estavam perto e diziam: a gente só vai fazer o que você deixar, Marcela.
Elas honraram com essa frase por toda a madrugada, todo o dia. E então eu pedi outra analgesia assim que a dor absurda voltou. Elas me alertaram: só pode mais meia dose e acabou. Eu achava que não conseguiria sentir mais aquilo tudo. Mas eu consegui mais longas 4 horas de trabalho de parto.
Tomei banho, andei pelo hospital, sentei na bola, conheci toda a ala de analgesia, vi todos os médicos, chorei baldes. Eu estava bem perto de ficar louca. Eu já nasci meio louca mas naquela hora eu achei que não ia conseguir voltar ao normal nunca mais.
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E acho que nunca mais voltei mesmo não... |
E as minhas meninas perto. Massagem, abraço, mão na mão, tirando o cabelo do rosto, limpando meu suor. E meu marido o tempo inteiro junto. Sem comer, sem dormir, éramos um bando de guerreiros do parto, unidos numa cruzada que já durava mais de 20 horas.
Nunca reconheci em nenhum ser vivo a força que vi em mim. Eu estava longe de saber o que ia acontecer mas já conseguia ter orgulho de mim. Coisa que nunca tive antes na vida. Mas alí, eu me sentia tão forte e divina e grandiosa que nada podia me parar.
Acontece que a segunda e ultima analgesia estava passando. Já eram quase 17 horas e eu não saí do lugar.
Esse momento aqui é aquele que a gente pensa: a vida é mesmo coisa muito frágil. É outro momento que escrevo chorando muito porque nunca vou me esquecer...
Elas ligaram uma música e me cercaram, como uma tribo. Uma tribo de mulheres e meu marido. Elas chegaram bem perto de mim. Elas cantavam, faziam carinho, mediam o batimento meu e da neném, elas me diziam: Marcela, está tão perto... A Lis está chegando. Que linda ela é. Tem muito cabelo. Já dá pra ver. Eu não tinha forças pra abrir os olhos mais. E acho que desmaiei algumas vezes. Por alguns segundos.
Faltavam 15 minutos para a analgesia passar por completo e eu já sentia tanta dor que não podia mais falar. Foi então que decidi sair da banheira (esqueci de comentar que a água era o único lugar que me sentia segura. Então, fiquei na banheira, no chuveiro, na banheira... o tempo inteiro. Mas a água também desacelerava meu TP. E eu não via. Só olhava os olhos cansados delas e tinha pena. Queria adiantar o processo pra que elas fossem comer, dormir, viver... Mas elas falavam: calma. Temos o dia inteiro, a noite inteira de novo. Estamos aqui por você e com você. Não tenha pressa. Tudo vai dar certo).
Aquelas meninas estavam sem comer e sem dormir. E transbordavam amor e paciência. Além de profissionalismo, claro. Muito profissionalismo. Muito respeito pela condição feminina. Pela fragilidade de uma mulher naquele momento.
E então eu saí da banheira, fui pra cama. E só consegui ouvir vozes muito embargadas dizendo: a Lis está chegando, Marcela! Força. E eu fazia força. E num momento muito tenso, me lembro claramente de ter o abraço da menina do cabelo preto. Eu tava quase desistindo de tudo. Eu não sabia mais o que fazer para trazer a Lis. Ela chegou perto do meu ouvido e disse assim: Marcela, você é uma guerreira. Parabéns por tudo isso o que você está fazendo. Não para agora, tá? Está indo muito bem. A Lis está vindo te conhecer...
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Até hoje eu não acredito nessa foto... |
E quando dei por mim, estavam todas elas com os olhos cheios dágua, sorrindo um facho de luz junto comigo e com o Chris. Aquelas 3 mulheres meninas pariram junto comigo. A gente estava tão emocionado que o quarto tinha uma cor diferente. A minha vida tinha ficado pra sempre diferente. Eu tinha acabado de nascer!
E isso, ninguém conta! Por isso eu demorei 1 ano, exatamente 1 ano, pra compartilhar.
Eu não lembro o nome delas agora. Eu só lembro dos olhos e do coração delas. E não quero terminar esse relato agradecendo. Porque agradecer a essas mulheres e a todo o corpo médico do Hospital Sofia Feldman não me é suficiente.
Eu quero é que esse post gire o mundo e chegue nelas. Quero que os olhos delas leiam cada linha desse texto e cheguem até o coração dessas 3 mulheres, para que elas saibam que, além de profissionais que trazem vida ao mundo, elas trazem dignidade para outras mulheres, como eu. E amor, amor, amor. Respeito, paciência. Elas trouxeram a Lis e a Marcela ao mundo. Elas trouxeram esperança.
E depois delas, nunca mais fui capaz de pensar de outra forma que não assim: a generosidade e o amor vão salvar o mundo. E eu e Lis vamos espalhar generosidade e amor por onde formos. Em nome daquelas meninas que não desgrudaram da gente nenhum minuto. E que me fizeram, em 33 anos, sentir amor no estado mais puro que pode existir.
Ah, lembrei: as enfermeiras se chamam Tatiany [a menina do cabelo loiro] e Kelly [a menina do cabelo preto] e Júnia, a doula e eu queria que esse post chegasse até elas pra eu compartilhar agora, 1 ano depois, um pouco do que estou sentindo até hoje. Porque gratidão é a melhor memória que um ser humano pode ter e porque elas precisam saber o quanto as amo, do fundo do meu novo ser.
Emocionante.
ResponderExcluirGratidão por compartilhar sua história tão linda!
ResponderExcluirGratidão por compartilhar sua história tão linda!
ResponderExcluirTrabalho no Sofia... conheço as meninas e tenho tanto orgulho disso. Parabéns mamãe... lindo relato... #olhosmolhados!!!! Super bjo Cris do Diney
ResponderExcluirDerramando lágrimas! Lembro-me também de ter recebido essa força das meninas do Sofia ao receber minha menina, também à um ano! Sua história parece muito com a minha! Gratidão por compartilhar! <3
ResponderExcluirLindo relato. Obrigado por compartilhar.
ResponderExcluirLindo relato. Obrigado por compartilhar.
ResponderExcluirQue palavras! Parabéns por tudo!!! Por tudo mesmo!
ResponderExcluirNossa, estou chorando tanto! :) Que linda você, que lindas elas, que linda sua pequena! Felicidades e amor! :D
ResponderExcluirFiquei imensamente emocionada Marcela, senti tudo junto com vc enquanto lia seu relato! Revivi o meu parto, que também foi no Sofia a 5 meses, ainda estou digerindo todo o meu processo na experiência de parir a Elisa, meu parto não foi tão longo, já entrei no hospital com 7cm de dilatação, mas fui igualmente tratada com muito carinho e atenção, a minha menina se chama Dani, uma pessoa de muita luz, um anjo, me dizia que eu estava indo muito bem, sempre me dando forca e me encorajando a seguir em frente! Vc realmente `e guerreira, e parabéns pela filha linda!
ResponderExcluirMinha filha passou por este processo lindo . Sábado, dia 30 de abril nasceu o seu filho lindo, Davi. O relato dela parece com o seu. Fiquei feliz de saber que existe um lugar em que existe amor além do profisionalismo
ResponderExcluirque coisa mais linda!!! #superemocionada
ResponderExcluirE eu poderia ler/ouvir durante 3 dias a fio, sem parar, o que você tem para contar sobre esse parto. <3
ResponderExcluirLinda história, realmente você é uma guerreira que lutou pela sua Lis e venceu! 😄 👏👏
ResponderExcluirChorando baldes, Marcelinha. Obrigada por compartilhar esses remoimentos.
ResponderExcluirChorando baldes, Marcelinha. Obrigada por compartilhar esses remoimentos.
ResponderExcluirDeus abençoe, lindo seu depoimento. Que coragem teria desistido, parabéns.
ResponderExcluirNossa!!!Lindo mesmo!!!Parabéns para todas as envolvidas e para seu marido, Marcela!!!
ResponderExcluirNossa!!!Lindo mesmo!!!Parabéns para todas as envolvidas e para seu marido, Marcela!!!
ResponderExcluirEm prantos. Que depoimento, meu Deus! Muito emocionante! Descobri ontem que estou grávida e, pesquisando sobre fazer o parto no Sofia, encontrei essa maravilhosa história. PARABÉNS MAMÃE, LIS, MARIDÃO, ANJINHAS E EQUIPE. Esse depoimento me encorajou a fazer tudo lá! OBRIGADA, OBRIGADA, OBRIGADA!
ResponderExcluirQue bom Ju!!! Compartilhe passa pra frente e conta com a gente pra essa jornada. As mulheres estão unidas!
ResponderExcluirEu chorei, confesso ❤
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